É verdade que a Bíblia proíbe mulheres de trabalhar fora?
O pastor batista Yago Martins relata um caso emblemático em seu livro Igrejas Que Calam Mulheres: uma fiel de sua comunidade em Fortaleza vivia angustiada por ganhar mais que o marido, acreditando que isso fosse um erro ou pecado. O homem, embora dedicado — acordava às 4h30 e retornava após as 18h —, não conseguia sustentar sozinho a família, nem pagar a creche dos filhos. Martins explica que a visão de que a mulher deve ficar em casa, enquanto o homem provê o sustento, é comum em igrejas fundamentalistas, mas destaca a realidade socioeconômica brasileira: “Muitas mulheres trabalham por necessidade, não por escolha”.
Raízes bíblicas do debate
A discussão frequentemente remete ao Gênesis, onde, após a expulsão do Éden, Adão é condenado a trabalhar com “o suor do rosto”, e Eva, a ter filhos com dor. Alguns interpretam isso como uma divisão divina de papéis: homens no trabalho externo, mulheres no cuidado doméstico. Já o Salmo 128 exalta a mulher como “vinha generosa no interior da casa”, reforçando o estereótipo.
No entanto, teólogos alertam para o anacronismo de aplicar textos antigos literalmente ao contexto moderno. Ivone Gebara, teóloga feminista, ressalta: “As sociedades agrárias do passado não podem ser comparadas ao capitalismo atual. A Bíblia não deve ser usada para justificar desigualdades”.
Mulheres trabalhadoras nas escrituras
A Bíblia, porém, não ignora exemplos de mulheres ativas economicamente. Em Provérbios 31, a “mulher virtuosa” é elogiada por administrar negócios, comprar terrenos e vender tecidos. Lídia, citada em Atos dos Apóstolos, era comerciante de púrpura, e Priscila, junto do marido, fabricava tendas. “Essas histórias mostram que o trabalho feminino não era incomum, mesmo em contextos patriarcais”, explica a teóloga Adriana Guimarães.
Novo Testamento e contradições
As cartas de Paulo, por outro lado, ecoam a cultura de sua época. Em Efésios 5, ele exorta maridos a “alimentar e cuidar” das esposas, como Cristo faz pela Igreja — interpretado por alguns como uma responsabilidade masculina de prover. Contudo, estudiosos destacam que Paulo também reconhecia mulheres como parceiras em ministérios, como Febe, diaconisa citada em Romanos 16.
Design divino ou realidade prática?
Yago Martins defende um “propósito divino” na divisão de papéis, vinculado a diferenças biológicas: homens, com maior força física, estariam “projetados” para trabalhos externos, enquanto mulheres cuidariam do lar. No entanto, ele admite que a modernidade alterou essa dinâmica: “Trabalhos intelectuais e contraceptivos permitiram novas configurações”.
Gerson Leite de Moraes, teólogo do Mackenzie, critica o machismo estrutural: “Jesus incluía mulheres em seu ministério, mas os redatores bíblicos, influenciados por sua cultura, as colocaram em segundo plano”.
Conclusão: contexto é tudo
A Bíblia reflete sociedades onde o trabalho doméstico era central para as mulheres, mas também registra exceções que desafiam estereótipos. Para especialistas, a proibição do trabalho feminino não é bíblica, mas uma leitura seletiva de textos, desconsiderando contextos históricos. Como resume a freira Andreia Morais: “A escritura não nega o protagonismo da mulher — ela é crucial na transmissão da fé e da justiça”.
Fonte: BBC News Brasil